20.6.10

Na noite escura da alma


"There is a woman in somalia
The sun gives her no mercy
The same sky we lay under
Burns her to the bone
Long as afternoon shadows
It's gonna take her to get home
Each grain carefully wrapped up
Pearls for her little girl"
 
Na noite em que nasceu aquela bela menina, seu pai não estava presente. Ela teve de ser tirada às pressas do útero de sua mãe, pois seu coração batia muito apressadamente, segundo o médico, e já estava na hora de nascer. A mãe sentia-se sozinha naquele instante, desprotegida, insegura. Entregou-se nas mãos de Deus. Confiou no médico e disse: "Doutor, estou em suas mãos". Ali já estava sendo montado o script da história daquela menina: lidar com a solidão, com a ausência, com um feedback do outro às vezes difícil de lidar. Logo que nasceu, percebeu-se que no seu peito havia uma ferida. Uma ferida que deveria ser sempre muito cuidada, porque qualquer coisa poderia torná-la exposta, uma ferida aberta e que poderia sangrar muito. Levá-la à falência ou a uma deformação do corpo.
Durante algum tempo, a menina viveu feliz, sem perceber a existência da ferida. Mas começou a crescer e a olhar melhor para o próprio corpo. Viu aquela cicatriz, mas não deu importância. Saiu ao mundo. Machucou-se algumas vezes. Sempre pelos mesmos motivos, mas continuava a ter as melhores esperanças diante do futuro que se mostrava longíquo. Sonhava. Sonhava muito.
Até que a ferida abriu-se demais, sangrou muito, e nessa época, achou que não podia mais viver, que era diferente, estranha. E seu corpo deformou-se pela primeira vez. Ficou horrorizada, já não podia mais olhar-se no espelho. Lágrimas caiam de seu rosto. E seu peito continuava aberto sem que encontrasse a cura. Já estava pálida. Até que encontrou um bálsamo. Era uma medida paliativa, mas que foi dando certo. Seu corpo começou a ter a forma de antes. Começou a olhar-se no espelho. Começou a sorrir novamente. E voltou a acreditar na vida, no futuro. Sentiu-se bem. Esqueceu do bálsamo. Encantou-se de novo, iludiu-se novamente, achando que já estava curada. E quando pensava que não mais havia ferida em seu peito. Sangrou profundamente. Novamente seu corpo deformou-se. Encontrou outro remédio, vindo de um boticário duvidoso, mas que funcionou durante um tempo. Até que o boticário resolveu ir embora e com ele, levou o remédio que tinha um grande efeito colateral. A ferida abriu-se novamente. Agora a pobre moça olha para a ferida e vê seu corpo começar a deformar-se. Não sabe o que fazer. Foi até uma feiticeira. Esta respondeu que a cura estava dentro dela mesma. A moça procura desesperadamente. Na verdade, neste instante já parou de procurar e quer mais é que essa ferida abra-se e que todo o sangue se esvaia por ali. Descobriu, então que a ferida fala. A ferida tem muita raiva. Um raiva contra ela mesma.
Ela pergunta-se surpresa: "Por quê? O que te fiz? Posso fazer algo para que me perdoes?" A ferida emudeceu. A raiva é grande. Um silêncio frio e congelante toma conta de seu coração. Sente-se perdida. Mas ainda acredita que alguém possa curá-la dessa ferida. E a tal ferida indigna-se. E jura que nunca se curará enquanto a moça, ela mesma, não buscar a cura em si mesma. A menina sonha, ainda sonha.

Excerto da música Pearls, Sade.

Um comentário:

Rosa Mayer disse...

Teu texto me fez lembrar disso:
CURA
... é quando a gente pega a doença no colo e pergunta o que ela tem. A gente deixa ela falar e presta muita atenção, e quando ela termina, já não tem mais nada pra curar.
Carta do baralho "Palavra de Criança"