21.12.08

A beleza das coisas


"Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou."


O Eu ainda não se reconhece em mim mesma, a imagem é falsa, a visão embassada, a atitude enganada, a ilusão fortificada. Enquanto isso, o amor é sufocado por miragens, totens e tabus. Só quando o Eu tomar conta do Ser e a imagem se esvaziar e o falso brilho se apagar, a liberdade virá e o amor se libertará e se manifestará da forma que só ele sabe: puro, livre, intenso, alegre, grande, confortador, pleno. Tudo será amor e a toda volta estará sua presença. Belo, perfeito, perfumado como jasmim. A delicadeza da flor, a mistura tênue de cores e tons em cada pétala. A unidade na harmonia, a perfeição. A espiral. Onda do mar que nasce e morre na beira da praia para nos lavar. A vida em movimento. Dança de Shiva. Nascimento e morte. A criança dando os primeiros passos, o sorriso ensolorado da queda. A certeza da perfeição, o preto e o branco se fundem. Somos maiores que nós mesmos. Os quatro elementos formam um quinto. A quinta essência. O Espírito. Então, tudo será parte e todo, único e diferente. A diferença na unidade. O medo se dissipará, seremos tomados pela onda serena do amor. E tudo se expandirá.
Mas o Eu ainda não se reconhece em mim. Ardente desejo me toma. Necessidade de sentir a alegria eterna da alma, do Universo. A sincronia da vida, dos planetas em movimento. Quero entregar-me a essa enegia. Raio transformador. Júpiter. Expansão ilimitada. Confiança. Então a riqueza do mundo, a variedade da manifestação do amor. O Eu.

Imagem: Kandinsky, Small pleasures.
Excerto: Clarice Lispector, A hora da estrela.

13.12.08


"Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte."


Amarrada. A moça está amarrada em emaranhados que ela mesma fez noite passada. Tentava fiar toda a sua vida. Perdeu o controle, perdeu o norte e adormeceu. Caiu em sono profundo de longos pesadelos. Parecem reais. É tomada por um medo de não acordar. Ou será que está acordada? Confunde-se. Sonha. Entra num beco sem saída, que cai num poço profundo. Mergulho no inconsciente. Perdeu-se. A Alice perdida no seu próprio mundo. Visões, imagens fantásticas. O sorriso do gato. Milhares de histórias lhe vêm à mente e não consegue mais distinguir fantasia e realidade. Tudo se funde. Espetou o dedo no fuso enquanto tecia seu destino que parecia certo. Agora, Penélope espera Odisseu. Só seu amor pode lhe despertar para vida. Teme não reconhecê-lo na sua volta, teme não aguentar sua espera perder-se nos seus sonhos. Ficar ali. Emaranhada entre lãs e linhas, destinos fantásticos. Questiona-se. Deve esperar? Deve ceder? Há tantos chamados, tantas luzes, tantos brilhos em seus sonhos e linhas que entorpecem suas angústias e anseios. Entorpecem sua lembrança, seu amor por Odisseu. Olha a sua volta. Vê Odisseu em todos os rostos. Não será ele? Dá-me um beijo, pensa. Vem cá e desperta-me desse tormento. Encosta seus lábios nesses rostos. Desfacelam-se. E tudo é nada. Miragem. Devaneios criados. Fiados. O tear conhece seus segredos, todos os dias ajuda a tecer seu destino, que a noite desfia. Cada dia é um recomeço. Desencanto. Desamor. Em meio a figuras míticas, sente que as formas feitas de lã e linha têm muito a dizer. O que aprender com esses sonhos? Escuta as batidas do coração. Seu novo norte.


Imagem: Vincent Van Gogh, Peasant woman winding bobbins.

Excerto: Marina Colasanti, A moça tecelã.

3.12.08


"Perdoa, meu amor, perdoa/Perdoa se lhe magoei/A minha vida era só melancolia/Até você me aparecer um dia/Como se fosse uma rosa fugidia/Fez dos meus sonhos esta louca fantasia"


Eu não sei o que sinto. Simplismente sinto. Desejo medo. Meus pés estão sobre as pedras de uma cachoeira linda, estou no limite da queda das águas, quero jogar-me. Cair nas águas, sentir seus frescor, sua energia. Mas parece alto demais, violenta demais suas águas. Então, o medo me toma. E fico estática. Ali em cima. Olho para ela. Envolvente. Sedutor movimento. Ouço sua voz. É música. Ela me conta muitas coisas e sinto mais vontade de atirar-me em suas águas. E mais medo. E fico confusa. Não quero perder essa sensação, não quero perder-te. Mas tenho de deixar a vida seguir seu fluxo, cada gota tomar seu caminho. Porque resistir? É tudo tão desconhecido. Ou conhecido? Parece, volto ao passado ao te sentir. Como se já tivesse sentido isso. E a dúvida me toma. Não quero. Eu quero. Eu quero o colo. O beijo d'água doce em meu rosto. O abraço, o envolvimento do rio que me toma. Fecho os olhos. Eu sou a água. Toda a sensação passa em minha mente como realidade. Vivencio em meus poros. Mas continuo ali. Parada. Os pés escorregam sobre as pedras. Piso em falso. A insegurança se apodera de mim. Preciso me tornar mais água, fluída como ela. Mais pedra, firme. Entrego-me a minha natureza.

Imagem: René Magritte, The evening dress, 1954.
Excerto: Casemiro Viera, Perdoa, meu amor.