15.8.09

Renascimento


Uma menina nasceu na beira do lago com a assistência de grandes peixes e sapos. Formigas, bactérias, plantas. Toda uma viva natureza ali estava naquela clara manhã de sol. Nasceu ali. Depois de muito sofrimento de sua mãe, que a pariu sozinha. Lavada pelas lágrimas da mãe, pensou a criança ser filha da chuva. Filha do céu e das nuvens. Urano, o pai céu. Ficou ali sozinha, depois de sentir um corpo quente contra o seu que lhe apertou forte. De sorte era verão, o bebê desnudo à margem do lago foi aquecido pelo sol intenso. Então chorou. Sem saber muito porquê. O choro de criança atraiu outros seres. Seres esvoassantes vieram até ela.
Ainda não sabia o nome das coisas, o que era feio ou bonito. Mal registrava o que via. Impressionava-se com tudo. Tudo era novo e tinha um encanto e colorido sem igual. Sentia-se pequena diante do todo. Esforçava-se para arregalar os olhos e enxergar melhor. Escutava melhor que enxergava. Escutava cantos de pássaros e vozes que a lembravam algo familiar. Gostava desse som familiar, embora não fossem as vozes de sua memória. Muito antes de perceber que o mundo era cheio de cor e vida, ouvia o escuro. Sentiu-se amparada. Sua mãe eram as estrelas, o céu infinito. Lua em Áquario conjunto Júpiter. Sol em Touro, primavera. A grama é coberta por um tapete de flores. E sente-se bem naquela manhã. Tudo parece calmo, claro, aconchegante e infinitamente grande. Deseja o céu. E o Urano ali está. Azul. Amparando aquela linda garotinha. Sente fome. E alguém vem lhe buscar. Que será? Chora. A única coisa que sabe fazer é chorar. Logo o pranto se desfaz acalentado por um colo quente e terno de mulher. Que a oferece o peito. Instintivamente busca aquele seio, no anseio de ali se nutrir, se aconchegar. Se revigora, novamente tem energia para chorar. É um bebê vigoroso. E novamente, aquele colo some. Estava quentinha nos braços daquela mulher e teve seu aconchego perturbado. A mulher vai embora e ela se torna só. O deus Céu de novo torna-se sua mãe. Infinita. Intermitência de uma lua aquariana.

Imagem: Frida Kahlo, Abrazo Amoroso, 1949.

7.8.09



"Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinha Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava."


Real. Ando extremamente realista. Entro em contato com o Real e percebo minha loucura. Não há nada mais louco do que tomar a palavra pelo que ela exatamente é: palavra. A coisa. É a extrema seca do ser. Preto branco. Já não há mais chuvas. Tudo é aridez. O seco toma conta e o sol torna-se causticante, intenso. Dolorido. Pesado. Fogo. Provação. Finalmente a dor é aquilo que se sente ao provarmos o real, a vida intensa, a vida que circula no sangue de um inseto, que pulsa na terra, nos vários pequenos seres que trabalham sem ninguém perceber, aquilo que se transforma a todo instante. A própria impermanência. O dia e a noite. A luz e a sombra. O natural e o que achamos ser sobrenatural. Tocar o real é ver a vida sem máscaras. É o nu. Apenas o nu. Sem desejo. Sem tesão. Sem asco. Sem assombro. É o que é. Está posto. Adão e Eva antes de comer a maçã. A inconsciência, a ideia de completude. Um cachorro vivo acha-se feliz porque não se percebe como cachorro.
Tapas na cara. A vida tem me dado muitos tapas. Já acordei sem mil vezes de doces sonhos desconexos. Os olhos não piscam mais. Nem abrem como antes. Estão fixos num ponto vago que nem mesmo eles sabem onde é. Não conseguem olhar pra fora. Mar adentro. Buscam um ponto na alma. E não entendem ou decodificam o que veem. Apenas olham. Tentam manter a sobriedade. Tentam enxergar a luz. Mas neles mesmos têm um maldito ponto cego. Uma escuridão que não se alumia. Em que parte da vida estou cega? O que eu não enxergo? Onde está o ponto cego? É possível enxergá-lo? É essa luz cega. Esse branco intenso no azul gritante do céu. Não se vê sombra. Um eterno meio-dia se faz sobre os seres e não há possibilidade de enxergar-se qualquer outra coisa além de objetos intensamente iluminados. O deserto o real o oasis o delíriO.
Imagem: Mulher Chorando, Cândido Portinari, 1945 Coleção Retirantes.
Excerto: Vidas Secas, Graciliano Ramos.