23.1.09

"É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno."

Vejo uma amiga dia desses. A pata do bicho que ela tenta engolir está esperneando no canto da boca. Dias depois um sapo enorme pula em minha garganta e acordei com falta de ar. Sem conseguir respirar. Tossi. Tentei vomitar. O bicho entala no esôfago, ali naquela região que dói muito quando se tranca o choro. Sabe? Pois é. Foi bem ali, naquele ponto que o maldito bicho ficou. Vivo e gritando. Aproveitei o líquido viscoso que ele largou em minha garganta para ajudar-me a engoli-lo. Dores horríveis no estômago. Contrações. Aquelas em que se tem vontade de quebrar tudo. O travesseiro pressionado contra a barriga. Aquelas dores em que se sente vontade de morder forte. Aquelas em que se chora feito uma criança. Chorei. Chorei muito, sem colo. Ainda não digeri. Devia existir uma intervenção cirúrgica para esses casos de sapos insistentes engolidos à força. Um método rápido e com anestesia. Em um instante se tira o bicho dali, sem dó nem piedade.
Outro lugar tem me causado dores de cabeça. As costas doem muito. Dores fortes. Não sei se é pelo fato dos sapos se alojarem na garganta. Deve ter relação. É bem atrás, no que se chama de cervical, o pescoço. Dói muito. Deveria ter como arrancar fora e colocar uma prótese de metal. Sinto que sou o próprio Atlas. Será que ele sentia dores na costas? Acho que não. Não devia, não. Afinal, ele era um Titã! Um Titã! Eu não sou um Titã. E porque diabos estou segurando o mundo? Nem tenho as costas largas! No início, achei que podia. Mas é pesado!
Passava pelo centro esses dias e entrei na Galeria Chaves que dizia: vidas passadas, numerologia, mapa astral tudo por três reais. Mas a banca estava fechada. Isso tudo deve ter uma explicação maior. É estranho tudo isso. Quando penso nessas coisas, sinto-me menor que o sapo verde. E identifico-me com uma barata, um bicho tão sem noção de si mesmo e do mundo. Tão fora de tudo. Tão desamparado. Entocado que. Não sei. Nasce em mim um sentimento de compaixão. De dó. E vejo que também nada sei, um sentimento de igualdade toma conta de mim e sinto que eu e a barata somos feitas da mesma coisa e não só ela, mas eu também não sei o que faço aqui.
Excerto: Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.

7.1.09

A Vida Pulsa


"Glória perguntou-lhe:
- Por que é que você pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar."


A mulher sente uma raiva canina, vontade de mostrar os dentes. Ela rosna. Necessidade de marcar território, delimitar espaço, riscar limites no chão. Onde estão suas fronteiras? Pergunta-se. Seus guardas e lobos que vigiavam o sagrado bosque do eu? Agora ela dá voltas em torno de si mesma. Cachorro acuando. Quer morder! Invadiram seu território, os guardas convidaram os inimigos para entrar. Devastaram árvores, a seiva corre pelo tronco. Ferida aberta, pulsante. Ranger de dentes. Impropérios, palavras de baixo calão, gritos estridentes, entre-dentes, avisos. Agora, já se foram e nada pôde fazer. Vontade de levar o inimigo à morte. Tocaia. Arma branca. Não! Guerra de trincheiras. Inimigo declarado, fronteiras definidas. Combate a céu aberto. Público. Raiva vívida vermelha cor de sangue transborda fervilha em si. Raiva. Raiva dela mesma, de deixar que isso acontecesse mais uma vez. Lembra-se da exortação às mulheres passivas. A mãe fala: "não revida. Ignora. Quieta. Deixa. Calma. Cega." A filha teima. Faz o contrário. Até que, acorda um dia e não encontra seus guardas suas fronteiras. Tudo foi invadido, ultrapassado. Intrusos. E então, a filha percebe que aprendeu muito bem os anos de catequese. Perdeu seus instintos, os lobos foram presos e estão furiosos. O medo de soltá-los cresce a cada dia. Não se sabe do que são capazes, do tamanho e limites da raiva. Eles latem. Mostram os dentes. É uma matilha inteira. Sacodem os portões, fazem força para sair. A menina segura as grades e sorri. Na verdade queria mostrar os dentes. E mostra num sorriso disfarçado. O Coringa, a loucura. Quer criar a paz a todo custo. Na sua pele saltam as veias. Esconde o rosto. Esconde a mão fechada que quer dar um soco. O Louco aparece, faz estragos. Está tomada pela raiva trancada, furiosa. Socorro! O self grita. Emergência. Panela de pressão. Vulcão. Estrago. Devastação. Cinzas. Morte. Quebra de estruturas, Plutão em Capricórnio. Vinte e sete anos de trabalho. Vida nova. Renascimento. A Fênix. Novo ciclo se inicia. Tentativa de soltar os lobos. A menina corre.

Imagem: Frida Kahlo, Uns quantos golpes, 1935.
Excerto: Clarice Lispector, A hora da estrela.