7.1.09

A Vida Pulsa


"Glória perguntou-lhe:
- Por que é que você pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar."


A mulher sente uma raiva canina, vontade de mostrar os dentes. Ela rosna. Necessidade de marcar território, delimitar espaço, riscar limites no chão. Onde estão suas fronteiras? Pergunta-se. Seus guardas e lobos que vigiavam o sagrado bosque do eu? Agora ela dá voltas em torno de si mesma. Cachorro acuando. Quer morder! Invadiram seu território, os guardas convidaram os inimigos para entrar. Devastaram árvores, a seiva corre pelo tronco. Ferida aberta, pulsante. Ranger de dentes. Impropérios, palavras de baixo calão, gritos estridentes, entre-dentes, avisos. Agora, já se foram e nada pôde fazer. Vontade de levar o inimigo à morte. Tocaia. Arma branca. Não! Guerra de trincheiras. Inimigo declarado, fronteiras definidas. Combate a céu aberto. Público. Raiva vívida vermelha cor de sangue transborda fervilha em si. Raiva. Raiva dela mesma, de deixar que isso acontecesse mais uma vez. Lembra-se da exortação às mulheres passivas. A mãe fala: "não revida. Ignora. Quieta. Deixa. Calma. Cega." A filha teima. Faz o contrário. Até que, acorda um dia e não encontra seus guardas suas fronteiras. Tudo foi invadido, ultrapassado. Intrusos. E então, a filha percebe que aprendeu muito bem os anos de catequese. Perdeu seus instintos, os lobos foram presos e estão furiosos. O medo de soltá-los cresce a cada dia. Não se sabe do que são capazes, do tamanho e limites da raiva. Eles latem. Mostram os dentes. É uma matilha inteira. Sacodem os portões, fazem força para sair. A menina segura as grades e sorri. Na verdade queria mostrar os dentes. E mostra num sorriso disfarçado. O Coringa, a loucura. Quer criar a paz a todo custo. Na sua pele saltam as veias. Esconde o rosto. Esconde a mão fechada que quer dar um soco. O Louco aparece, faz estragos. Está tomada pela raiva trancada, furiosa. Socorro! O self grita. Emergência. Panela de pressão. Vulcão. Estrago. Devastação. Cinzas. Morte. Quebra de estruturas, Plutão em Capricórnio. Vinte e sete anos de trabalho. Vida nova. Renascimento. A Fênix. Novo ciclo se inicia. Tentativa de soltar os lobos. A menina corre.

Imagem: Frida Kahlo, Uns quantos golpes, 1935.
Excerto: Clarice Lispector, A hora da estrela.

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