21.5.06



"Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver".


Uma menina sobe a rua até um cruzamento, ausentes barulhos, irreconhecível travessia àquelas horas. Um misto de liberdade à melancolia, no alto de um morro vê-se as veias da cidade, o charco de sangue. Lembra-se de Caio Fernando, de Clarice Lispector, de Virgínia Wolf. Felizes na sua tristeza a produção vazava, a composição de letras, sons e notas se fazia belamente. Nada pode explicar a arte da criação. Esse dom aquela mulher não tinha, caminhava ao encontro dos fluxos, mergulhar no vazamento. Seu destino a sufocara, era muito grande para suportar seus próprios limites, o corpo vaza. As lágrimas escorriam pelo seu rosto e eram como uma água gelada do peito, entre soluços e pulsações alteradas, girava na desesperança da sua angústia. Algo prendia a sua respiração. Em seu peito o peso do vazio, o ar rarefeito, quanto menos se sente mais dor. Músicas balançavam seus cabelos negros, cheiros e rostos desprezíveis, inúteis, covardes. Nada mais a feria, ao seu redor a noite desfigurada. Espelhos que se esfacelam e sangram. Olhos numa neblina de água salgada e cristalina, o mundo através de uma lágrima - vê um brilho que. Em meio a vidros amanhece mais um corpo desfacelado.
René Magritte, La magie noire - 1935
Clarice Lispector, Amor.