Hoje de manhã recebi um e-mail com um poema de Ferreira Gullar, que é perfeito para o que venho sentindo sem querer sentir nesses últimos dias. Sinto-me assim; metade. Dividida entre o sentimento e a razão. Entre o querer e o fazer. Entre a dor e o perdão. Entre chegadas e partidas. Entre gritar e calar. Entre correr atrás e deixar que se vá. Qual a medida de paixão? Qual a medida do anseio? Da dúvida? Da questão? Não sei, sinto-me entre metades. Entre sonho e realidade, entre liberdade e prisão. Tento caminhar na estreita fenda desse entre. Esse lugar que acolhe a dualidade e descobre que se é bom e mau, amor e ódio, tristeza e alegria, solidão e companhia.
Mas, prefiro deixar Ferreira Gullar falar por mim, sou uma escritora menor e nada sei do tempo, do outro e muitas vezes nem de mim.
Metade
Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo o que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio…
Que a música que eu ouço ao longe,
seja linda, ainda que triste…
Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.
Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.
E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso,
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto,
um doce sorriso,
que me lembro ter dado na infância.
Porque metade de mim
é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.
Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo,
mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor,
e a outra metade…
também
Imagem: René Magritte, The harvest.